21 dias na Antártida - Relato de uma Lemann Fellow
Natalie Unterstell conta como foi participar de uma expedição com 90 mulheres ao pólo sul
"Há coisas que as mulheres simplesmente não fazem”, declarou em 1946 o piloto Harry Darlington, participante da expedição antártica de Finn Ronne. “Não chegam a papas nem a presidentes. Não viajam à Antártida”. Darlington estava errado.
No final de 2018, com o apoio da Fundação Lemann, fiz parte de um grupo de 90 mulheres, de 33 países, que foi em direção ao continente gelado. Eu fui a única brasileira e espero ser apenas a primeira de uma geração que está se juntando para resolver os principais problemas do país.
Sou uma típica millennial: hiperconectada, inquieta e sinto o peso dos problemas do mundo nos meus ombros. Por isso, vivo em busca de resolvê-los. A inovação pública para a sustentabilidade é minha carreira e minha causa. Em 2016, soube que uma das lideranças ambientais que mais admiro, a costa-riquenha Monica Araya, foi à Antártida em uma expedição só de mulheres e, aliás, a maior de todos os tempos.
Quando ela compartilhou comigo a razão da sua viagem ao continente gelado, fui fisgada: resolver a crise de liderança que nos afeta em relação a alcançar igualdade e sustentabilidade no nosso tempo. Fascinada com o relato, me inscrevi no projeto Homeward Bound, decidida a me tornar uma das participantes.
O objetivo do programa é entender as transformações pelas quais o mundo está passando e interferir nos cenários que estão por vir, usando a Antártida como pano de fundo.
Em 10 anos, o programa selecionará mil mulheres para participar de uma rede de lideranças envolvidas diretamente em resolver os grandes problemas da humanidade. Um deles é o aquecimento global. Outro é a sub-representação das mulheres nos mercados que estão desenvolvendo as tecnologias que mais crescem no momento. Em 2016, Homeward Bound foi nomeada pela revista 'Fortune' como uma das iniciativas mais importantes mundialmente para as mulheres.
Antes da viagem, tive calafrios ao pensar nas ondas de 12 metros que nos abateriam na passagem de Drake, que separa as Américas da Antártida. Algo ainda mais assustador para mim era pensar em passar 21 dias confinada em um navio quebra-gelo com 90 mulheres que eu não conhecia. E se alguém gritasse? E se esse alguém fosse eu? Sou a terceira filha de quatro irmãs e nunca vivi paz feminina por tanto tempo na minha vida.
90 mulheres e um barco
Para liderar de forma diferente, de maneira mais colaborativa, com humanidade e humildade, começamos olhando para nós mesmas. Tivemos uma imersão em propósito pessoal e em um método de liderança construtiva, buscando saber lidar com nossos traços agressivos e defensivos.
Cada mulher apresentou seu trabalho científico e, juntas, trabalhamos em grupo sobre a igualdade de gênero, saúde das mulheres, poluição plástica e mudança climática. Todos projetos serão implementados nos próximos anos em escala global. Cada dia trouxe uma nova visão, um novo conjunto de emoções, um compromisso reforçado de trabalhar em conjunto para proteger este lugar especial e, ao fazê-lo, para nos protegermos.
Contra todas as minhas expectativas, em 21 dias juntos não houve fofocas ou brigas. Contribuiu para isso o método B.R.A.V.I.N.G., desenvolvido pela doutora Brene Brown, da Universidade de Austin, no Texas. Não teve mágica: foi um baita esforço consciente de respeitar regras simples de colaboração. Em lugar de disputas de poder e de superioridade, houve gentileza, riso, vulnerabilidade e respeito.
A mudança climática ao vivo
Apesar de trabalhar desde 2007 com a temática do aquecimento global, eu nunca havia escutado um relato científico tão assustador quanto o que tivemos dos cientistas da base americana Palmer. Eles nos contaram que a NASA registrou um aumento de 6 graus Celsius nos últimos 50 anos na temperatura média naquela estação científica Isso explica, em parte, por que escutamos glaciares quebrarem, derreterem e desmoronarem no curso da viagem. Eles soam o sino da urgência.
Pela mesma razão, os simpáticos pinguins de Adelie tem sofrido alta mortalidade de suas crias - sua população diminuiu em 65% nos últimos 25 anos. Eles só conseguem criar seus filhotes se migram para lugares mais frios.
A urgência está colocada pela velocidade desses impactos. Por enquanto, eles são mais visíveis e assustadores em um continente magnífico, mas totalmente distante da nossa realidade. Mas vale avisar que o que acontece na Antártida não fica só na Antártida. Atinge, por exemplo, a safra de soja do gaúcho e no avanço do mar na costa de Pernambuco. Não tem como fugir.
Nós, millennials, temos tudo à mão: recursos, tecnologia, ciência e muitas pessoas a par da questão climática. Somos nós que temos de juntar essas peças, como nunca antes. Existe até mesmo um plano pronto com tecnologias disponíveis hoje para estancar essa crise. O ponto central é acelerar, dando respostas com base nas ferramentas e nas ideias de nossa época. Não temos tempo a perder.
Exemplos de liderança
Uma das coisas que mais discutimos na expedição foi a necessidade de existirem mais mulheres que sirvam de exemplo, inspirando outras profissionais e jovens para que elas se enxerguem trabalhando na política, nas ciências e na tecnologia.
Alguns estudos já mostraram que incentivar a ocupação de espaços pelas mulheres é uma das medidas mais "fáceis" e com grande potencial de impacto no curto prazo para a igualdade de gênero. Assim como Mônica Araya me inspirou para ir à Antártida, precisamos de mulheres que nos deem o sinal de que podemos sim fazer coisas incríveis. Quem sabe chegar a papa.
Por essa razão, eu mandei cartas a autoridades brasileiras e estrangeiras, incentivando que respondam ao chamado de liderança tanto em relação à resolver a crise da mudança do clima quanto a acelerar ações para igualar oportunidades no mercado de trabalho.
Já existe uma história de mais de um século de exploração da Antártida por homens. Uma expedição como a nossa é, ainda, quase um milagre. No entanto, não somos as primeiras e nem queremos ser as últimas. Estamos trabalhando para atingir a meta de mil mulheres que têm umas às outras, que compartilham um compromisso com um novo tipo de liderança, que acreditam na diversidade e que estão comprometidas em trabalhar com e não contra a mãe natureza. Somos mais fortes juntas e, à medida que nossa rede cresce, nosso impacto será amplificado.