'A educação ajudou a descobrir o meu lugar'
Paty Santana, da Fundação Lemann, cresceu em Barueri, ama poesia, defende o consumo sustentável e trabalha por um país mais inclusivo
Olá! Me chamo Patrícia, mas todo mundo me conhece como Paty. Tenho 28 anos, nasci em Osasco, mas morei a maior parte da vida em Barueri.
Minha história começa com a minha mãe. Ela perdeu os pais aos dez anos e, sem acesso à educação, começou a trabalhar muito cedo como empregada doméstica e faxineira. Teve uma filha e um filho na Bahia. Diante da precariedade de condições, deixou sua terra em busca do sonho de uma vida melhor em São Paulo.
As crianças ficaram na Bahia com familiares. Minha mãe tinha a expectativa de voltar para buscá-los assim que a situação melhorasse, mas quem veio para São Paulo lá atrás na década de 80 (e ainda hoje), sabe como é difícil avançar sem ter concluído o ensino básico. Para completar, ela passou a enfrentar problemas de saúde e não conseguiu voltar. Já aqui em São Paulo, criou eu e mais duas filhas.
Sonhos que nos fazem realizar
A maior parte da nossa vida foi norteada pela falta. Mas esse ciclo de ausência sempre foi preenchido pelos sonhos da minha mãe. Ela contava sobre o sonho de ter terminado a escola; as viagens que suas patroas tinham feito e que ela um dia queria fazer com a gente; as comidas que já tinha cozinhado e toda a mágica de um universo que acompanhava tão de perto e, ao mesmo tempo, tão distante.
Os sonhos da minha mãe nos inspiravam a sonhar também. A viver as mesmas coisas com o incentivo mais profundo que ela nos deu e nunca teve: os estudos.
Pode parecer batido, mas a verdade é que só quem vive em situação de extrema pobreza sabe que apenas a educação é capaz de mudar essa realidade.
Para nós, o único caminho possível seria o da escola, o caminho não trilhado pela minha mãe, mas intensamente incentivado por ela.
Tudo é uma oportunidade
Posso ser triste ou celebrar ao contar minha história. É uma questão de perspectiva. Sempre olhei para as dificuldades como uma oportunidade de conseguir ou tornar algo melhor. Descobri cedo demais o poder de usar a nossa imaginação para transformar realidades. Lembro até hoje que toda vez que sentia fome ou medo, criava uma história na minha cabeça sobre como seria uma realidade diferente daquela até pegar no sono. Vivia sonhando com que o não tinha e pensando no que precisaria fazer para ter.
A escola era meu lugar sagrado, não só pelo meu respeito aos estudos, mas também porque era onde a maior parcela de refeição do dia era preenchida. Quando faltava era um dia triste. As amigas da minha mãe estranhavam e perguntavam: “Zenaide, como que faz para as minhas filhas gostarem tanto de ir para a escola assim?” Uma pergunta com muitas respostas.
Quando acabavam as aulas no final do ano, minhas irmãs me chamavam de Nossa Senhora das Lágrimas, cuja explicação está na foto abaixo (o choro era porque eu amava muito minha professora e ela mudaria de turma).
Tive uma infância e adolescência difíceis, sem condições para muitas coisas como gibis e livros, que eram a minha paixão. Aproveitava a hora da leitura na escola, mas não era suficiente. Passava horas namorando os gibis e livros de poesia na banca de revista do bairro. Às vezes, o dono brigava comigo porque eu lia tudo e nunca comprava nada.
Um dia passei por lá e a banca tinha fechado. Para minha surpresa, muitos livros e gibis antigos estavam ensacados, molhados, como lixo. Fiquei indignada, mas feliz! Levei tudo o que consegui para casa e, pela primeira vez na vida, tive gibis da Turma da Mônica e podia ler poesia sem hora para ir embora. Eram meus. Me sentia o máximo, mesmo quando zombavam dizendo que eu pegava coisas do lixo.
Passei a reparar no lixo de todas as bancas de revistas que passava em busca de livros, que, para mim, são tão valiosos e jamais deveriam ser descartados. Eu via como um sonho realizado e isso, de certa forma, me alimentou a vida inteira, pois sempre preferi acreditar que o aquilo que queremos chegará até nós. Hoje já li dezenas de livros, mas ainda olho para eles como uma história em quadrinhos ensacada me esperando para tirá-la dali e ser salva por ela.
As escolas e o senso de justiça
Sempre estudei em escola pública e quase todo ano tinha algum problema e precisava mudar de casa e de escola. Até a metade da 3ª série do Ensino Fundamental estudei na EMEF Professor Jorge Augusto de Camargo. Depois de lá, nos separamos do meu pai e mudamos para o Parque Imperial, ainda em Barueri. Fiquei ali por um ano e estudei em duas escolas. Gosto de lembrar da EMEF Rita de Jesus, que era recém-construída e, apesar de ter sido uma transição difícil, era meu lugar favorito.
Na 4ª série, decidi que estudaria muito para ser advogada. Queria ganhar bastante dinheiro, ser bem-sucedida e defender a minha família. Acho que a profissão nasceu comigo e continua aqui. Sempre fui tomada pelo senso de justiça, pelo gosto de falar em público, tomar a frente das coisas, ler, escrever e resolver problemas dos outros. Mas, naquele ano, a decisão estava tomada por uma questão de “não quero ver minha mãe nessa situação nunca mais”.
A situação era a seguinte: minha mãe ficou muito doente e já separada do meu pai, com três filhas, mesmo com as ajudas do governo e da assistência social, a conta não fechava. Faltava tudo em casa, mas para a nossa sorte, na rua que cruzava a nossa, tinha feira todo domingo. E todo domingo estávamos lá, fazendo amizade e pedindo para deixarem a gente pegar os ovos rachados que não seriam vendidos e as frutas e verduras que caíssem no chão perto da barraca e que virariam lixo se ninguém pegasse.
Na minha perspectiva, precisava ajudar a minha mãe a não se sentir mal pela situação e garantir que minhas irmãs ajudassem também. Criamos competições de “quem chega em casa com mais e melhores coisas”, coletamos latinhas para vender no ferro-velho e fazíamos um pouco de dinheiro. Mamãe ficava incrédula com a nossa inocência, mas sempre pregou o desapego pelo que os outros pudessem pensar da gente. Hoje vejo o tamanho da cura que a inocência de uma criança é capaz de causar.
A partir da 5ª série, mudei para a EMEF Maria Elisa Bueno Couto Chaluppe. São de lá as melhores lembranças da minha adolescência. Foi lá, também, onde passei pelo momento que foi o divisor de águas na minha vida: o falecimento da minha mãe. Veio assim, do nada, sem prazo para despedidas. Estava na 6ª série, era domingo de Páscoa e ressignificou todo o resto de uma vida ainda por vir. Não tinha ideia de como seria, mas me confortava saber que ela estaria melhor. A partir dali, tinha uma missão muito clara de continuar e sobreviver.
Quando tudo mudou
Eu e minhas irmãs enfrentamos uma batalha que parecia sem fim na justiça para não nos separarem em orfanatos. Eu tinha 12 anos e elas, 10 e 16. Nenhum familiar podia ficar com a gente. Até que surgiu a dona Teca, nossa fada madrinha. Era a ex-patroa da minha mãe que sempre ajudou a gente à distância. Ela tinha acabado de se casar com o Richard, um americano que veio morar no Brasil e assumiu desde o primeiro dia que nos viu o papel de pai. Daquele momento em diante, nasceu a nossa nova família.
Minha irmã de 16 anos se emancipou e conseguiu a nossa guarda (ufa!) e os dois nos adotaram à distância para garantir que ficássemos juntas. Essa ajuda, que para muitos era só financeira, foi a maior base de amor que guiou nossa vida e nossas decisões de lá pra cá.
Ter os dois acreditando em mim foi essencial para continuar. Dona Teca sempre fez questão de dar apenas as ferramentas necessárias, o resto, era por nossa conta. Isso nos ensinou muito, pois tivemos que amadurecer cedo para vivermos sozinhas, sabendo da importância de aproveitar oportunidades e, principalmente, de criá-las quando a sociedade insiste em te dizer que [as oportunidades] não foram feitas para você ou que você não foi feita para elas.
Educação como alavanca para novos e velhos sonhos
No primeiro ano do Ensino Médio fui selecionada para uma das poucas vagas da primeira escola técnica de Barueri, graças às minhas notas. Dentro das oportunidades que minha madrinha nos dava, ir bem nos estudos era o principal critério. Levar isso tão a sério me resultou em um intercâmbio para os EUA aos 17 anos. Mais um sonho sendo realizado: aprender inglês para poder falar com meu padrinho e agradecê-lo por tudo o que ele fazia por nós.
Quando voltei, tinha muita clareza do que seria o caminho: estudar para o vestibular, passar no curso de direito e ser uma advogada empresarial bem-sucedida. Consegui bolsa integral pelo PROUNI e escolhi o Mackenzie, que foi uma aventura incrível e dolorosa. A vida de quem tem bolsa de estudos não tem margem de erro – algo que achava já estar acostumada desde pequena.
Comecei a trabalhar no 1º semestre e estudava a maior parte do tempo no transporte público durante os cinco anos do curso. Tudo foi dando certo e realizei meu sonho: me formei, consegui efetivação num dos maiores escritórios de advocacia, após algumas tentativas passei na OAB. Apesar de ter uma vida confortável com o fruto do meu trabalho e de gostar muito do que fazia, sentia um incômodo grande de não conseguir retribuir tudo o que tinha conseguido até ali.
Sentia também uma angústia que não sabia nomear. Eu era uma das poucas negras em todos os ambientes que frequentava e passava a maior parte do tempo tentando me encaixar. Mesmo com acesso à educação, o caminho para nós será sempre um desafio maior: o de acreditar (e não esquecer) que estudamos muito para chegar ali e que não precisamos fazer sempre mais que os outros para provar que “merecemos” aquele lugar.
Esse lugar também é meu, seu, nosso
Aplicando minha ferramenta de perspectiva, ressignifiquei o tom do “onde você estudou”, “onde você mora” e “você é filha de quem? ” para o orgulhoso “caramba, olha só onde eu, logo eu, filha da dona Zenaide, cria de Barueri com a alma em Salvador, colecionadora de gibis e livros de poesia descartados e defensora do consumo sustentável da feira de domingo, cheguei.” Esse lugar também é meu.
Foquei em contar para pessoas com histórias difíceis que, apesar do caminho ser duro, se insistirmos na educação, dá. Gosto de inspirar crianças e jovens como eu a não pararem de sonhar. Ou, às vezes, a simplesmente terem um sonho.
Quando passei a dar mais atenção ao meu incômodo, conheci o Projeto Gauss, que apoia jovens de baixa renda com mentoria e bolsas de estudo em cursos preparatórios para o vestibular e o Ensino Médio. Em contato com esses jovens, revisitei meu passado e senti que precisava direcionar o meu trabalho para algo que causasse impacto. Não sabia como, mas sabia o porquê.
Após quase seis anos, pausei minha carreira como advogada e vim trabalhar na Fundação Lemann. Foi no comecinho de 2019 e, desde então, resgatei uma versão de mim que não conhecia: eu mesma. Deixei minha raiz do cabelo crescer e, pela primeira vez, me vi como uma mulher negra, sem medo do que isso pudesse significar. Passei a enxergar outras mulheres negras sendo a versão mais autêntica delas mesmas: a natural.
Me dei conta de que estudei tanto não para encerrar o ciclo da pobreza, mas para ter a oportunidade de escolher. Seja a comida, o lugar que quisesse ir e, principalmente, onde não quero ficar. Para levar mais consciência e falar sobre mudar a realidade do nosso país, para garantir uma sociedade realmente inclusiva, precisamos democratizar o acesso à educação, escutar a voz e dar protagonismo às pessoas de lugares cujos problemas que queremos tanto resolver continuam existindo.
Hoje, além da Fundação Lemann, me dedico ao Projeto Gauss como coordenadora de mentoria e conselheira fiscal. Também estou aproveitando meus cachos recém-descobertos.
Sonhar ainda é meu maior sustento. Tenho pós-graduação em desenvolvimento e em encontrar novas perspectivas para a vida, numa busca incansável para fazer algo maior com tudo isso que vivi e consegui com o incentivo da minha mãe e dos meus padrinhos.
Espero um dia poder contar minha história toda num livro, com os detalhes dessas e outras aventuras que não couberam aqui. Quero causar algum impacto na vida daqueles que em algum momento pensaram em desistir. Não desista. Esse lugar é meu e é seu, é de todos que aprendem a sonhar.