Conteudo Cabeçalho Rodape
21 novembro 2019 | 19h27

‘A educação é o meu propósito’

De advogado em São Paulo a professor em Caruaru: conheça a trajetória de Rodolfo Costa, do Ensina Brasil

Olá! Antes de contar como me apaixonei pela educação, vou me apresentar: sou o Rodolfo Costa, tenho 27 anos e sou de Santo André, na Grande São Paulo. Meu pai nasceu na Paraíba e minha mãe é alagoana. Eles nunca terminaram os estudos. Eu sempre frequentei escolas públicas e quando fui para o Ensino Médio tive a oportunidade de estudar em uma ótima escola técnica estadual, que foi um divisor de águas para mim. 

A realidade da escola técnica destoava das realidades dos meus antigos colégios. Na primeira semana de provas, por exemplo, o professor de história entrou na sala carregando um pacote com as provas impressas e eu lembro de pensar: “Que chique”. Porque, até então, as minhas provas eram todas ditadas, nunca tinha feito uma prova impressa.

O impacto de estar em uma escola tão diferente fez com que eu descobrisse alternativas, oportunidades. Lembro que já no nono ano, na antiga 8ª série, eu queria muito sair da escola onde eu estudava porque havia um grande senso de desesperança entre os meus colegas. Ninguém falava sobre ensino superior. Hoje, sendo professor, entendo o porquê. As pessoas não sonhavam naquela escola porque a faculdade estava muito distante. Era um lugar que não nos pertencia. Quando entrei na escola técnica foi uma grande mudança e essa mudança passou pelos professores extremamente dedicados com quem eu tive aula.

Rodolfo e o irmão na infância
Rodolfo e o irmão na infância
Fonte: Arquivo pessoal.

Prof. Fernando, uma inspiração

O professor Fernando, de língua portuguesa e literatura, foi especialmente disruptivo na minha vida. Ele me mostrava que a sala de aula era um espaço onde a minha voz era importante. Ele apostava em mim, me incentivava. Até então, na minha família, a pauta faculdade era abstrata e fui o primeiro a me formar. Lembro dos meus pais dizendo que a expectativa deles era de que eu terminasse o Ensino Médio e fosse trabalhar porque eles não viam a faculdade como algo prioritário. Mas o professor Fernando me mostrou que havia todo um outro universo de oportunidades.

Foi graças a ele e à paixão pela língua portuguesa e pela literatura que me encontrei. Cresci numa casa sem muitos livros e ele me proporcionou a descoberta do mundo que existe nas palavras, o que, para mim, foi uma ferramenta de empoderamento. Também foi quando falei: “Quero fazer faculdade e ser professor”. Já no final do terceiro ano, prestei a Fuvest e fui cursar letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

A primeira faculdade, o primeiro emprego

Nunca mais fui o mesmo depois de entrar na USP por tudo o que aquele universo representava de inédito para mim. Eu me encontrei no curso. Fiz o ciclo básico inteiro, participei do ranqueamento e escolhi fazer habilitação em inglês-português. Fui para o segundo ano disposto a começar as disciplinas da educação para iniciar a licenciatura. Além do bacharelado, queria sair com a licenciatura porque sonhava em dar aula. Mas ao final do segundo ano tive uma crise de identidade.

Eu já trabalhava nessa época. Era bolsista em uma escola de idiomas de bairro e, em troca, dava plantão como monitor de inglês. Primeiro em troca da bolsa, depois em troca de um salário. Trabalhava o dia todo, fazia faculdade à noite e morava em Santo André. A rotina era excruciante. Comecei a ter contato com os veteranos que se formavam na faculdade e acompanhava as oportunidades que se abriam para eles. Eu via vagas de estágio ou de emprego na docência e falava: “Não consigo me sustentar com isso. Será que estou fazendo a escolha certa? Em nome do meu propósito, será que estou abdicando de oportunidades que possam me ajudar a dar uma vida mais confortável para a minha família?”. Era 2011 quando entrei em crise e tranquei a faculdade.

O direito

Fui criticado pela minha família por ter “perdido dois anos da vida”. Então, fui fazer direito, que era a minha segunda opção. Entrei no Mackenzie pelo Prouni. Em cinco anos e meio, estava formado. Sinto que eu não seria o educador que sou hoje se eu não tivesse me formado advogado antes. Precisei desse desvio para me reconectar com o meu propósito.

Logo que comecei a cursar direito, em 2012, meu pai teve câncer e, paralelamente, descobrimos que meu irmão era dependente químico. Foi traumático para a minha família. Eu tinha acabado de entrar na faculdade, fiquei balançado, mas decidi insistir. Meus pais me incentivaram. Eles estavam um pouco mais confiantes na minha escolha de carreira.

Passada essa turbulência, fui trabalhar com fusões e aquisições de empresas, o que não tinha nada a ver comigo. No final de cada dia, eu me entristecia porque não me reconhecia nas pessoas com as quais eu trabalhava nem nos ambientes que eu frequentava. Tive outra crise nessa época, e me perguntava: “Quem eu sou, o que eu quero, onde vou canalizar a minha capacidade e energia, o meu propósito?”. Apesar disso, o final da faculdade foi um período feliz. Fiz o Trabalho de Conclusão de Curso em direito penal, uma área pela qual o meu coração bate mais forte até hoje. O tema era segurança pública e escrevi sobre como a violência da força policial ameaça a democracia. O trabalho foi premiado, passei na OAB no nono semestre e falei para mim mesmo: “Beleza, quem eu quero ser?”.

Ensina Brasil: um novo caminho

Àquela altura, eu tinha vontade de ser defensor público para trabalhar em nome de quem não pode arcar com os custos de um advogado. Nesse meio-tempo, por acaso, encontrei o Ensina Brasil. ao ler a frase “trabalhamos para que um dia todas as crianças tenham uma educação de qualidade” eu me arrepiei dos pés à cabeça. Logo, pesquisei como poderia me somar ao projeto e bati o martelo: “É com educação que quero trabalhar.” Em seguida, passei por um processo seletivo bastante rigoroso, com 11 mil inscritos para 100 selecionados. Fui aprovado e chegou o momento de decidir: “Continuo no direito ou digo sim a essa oportunidade meio louca?”. Porque a proposta do Ensina é passar dois anos dando aula em uma escola vulnerável do Brasil. Topei a experiência!

Rodolfo na Casa-Museu Mestre Vitalino, em Caruaru
Rodolfo na Casa-Museu Mestre Vitalino, em Caruaru
Fonte: Arquivo pessoal.

O primeiro desafio foi escolher para qual cidade eu iria. Eram quatro opções: Vitória, Cuiabá, Campo Grande ou Caruaru. Meu coração soube que era para o Nordeste que eu deveria ir. De todas as opções, eu sabia que Caruaru, em Pernambuco, tinha o cenário mais desafiador e vulnerável; era onde tinha a menor das remunerações, além de ser o polo mais distante e o que oferecia uma série de complexidades. Mesmo assim, foi uma escolha poderosa. A 2.600 quilômetros de casa, depois da minha primeira viagem de avião, eu me encontrei. No Ensina, a gente acredita que o desafio da educação pública no Brasil é complexo demais e precisa de muitas mãos. Acreditamos na liderança coletiva e no esforço compartilhado por esse sonho.
 
Não é fácil mudar de rumo. Como não tenho licenciatura, durante esses dois anos em sala de aula, complemento paralelamente a minha formação e sou acompanhado por um tutor pedagógico. Todo esse processo faz bem para mim. Existe um poder na nossa identidade. O lugar de onde a gente vem é uma força. Em alguns momentos da minha trajetória, eu enxergava que o lugar de onde eu vim era uma fraqueza e ser professor me mostrou justamente o contrário. Acho que foi a escolha mais acertada da minha vida. Quando as pessoas falam que eu perdi tempo estudando direito, penso o oposto: eu não seria o mesmo educador se não fosse esse longo desvio.

Um professor em (trans)formação

A minha primeira aula foi um fracasso. Gaguejei, falei coisas sem sentido, senti um desconforto. Por cada poro, eu transpirava insegurança, medo, e os alunos leram isso no meu rosto. Para completar, além da minha inexperiência, quando chegamos em Caruaru, diferentemente de outros polos, não havia turmas consolidadas de Ensinas [como são carinhosamente chamados os participantes do projeto]. Assim, veio o primeiro baque da jornada: depois de apenas uma semana, o programa não foi bem recebido pela escola que estávamos. Fomos realocados para a Escola em Tempo Integral Prefeito João Lyra Filho.

Selfie na sala: o professor Rodolfo com uma de suas turmas de alunos
Selfie na sala: o professor Rodolfo com uma de suas turmas de alunos
Fonte: Arquivo pessoal.

O desafio foi absurdo e a maior dificuldade foi descobrir como ser professor. Lembro que no meio de uma aula eu pensei: “Que escolha eu fiz da minha vida?”. Fui para casa aquele dia derrotado, passei um fim de semana de muita dor. E falei: “Basta, preciso me reinventar e acreditar que o Ensina acertou em me escolher, tenho de ser resiliente. Preciso voltar na segunda-feira para a sala de aula e vai ser diferente”. Não foi mágico, foi um processo. Busquei referências, consultei professores experientes; acertei, errei, replanejei minha estratégia.

As coisas foram evoluindo. Em maio de 2018, percebi que estava revertendo o cenário ao conseguir garantir oportunidades significativas de aprendizado. Comecei a entender que é importante a gente não olhar para o professor simplesmente como uma carreira que envolve vocação ou sacerdócio, mas como uma carreira técnica.

Rodolfo e duas alunas
Rodolfo e duas alunas
Fonte: Arquivo pessoal.

Minha experiência na escola integral foi desafiadora porque era o primeiro ano de implementação desse modelo em Caruaru, o ICE (Instituto de Corresponsabilidade pela Educação), já está consolidado em Pernambuco com o Ensino Médio, mas não no Fundamental ll. E essa primeira fase de implementação é conhecida como “o ano da sobrevivência”. Não à toa se chama assim, pois foi extremamente desafiador. Em vários momentos, pensei em desistir. Mas enxerguei uma luz ao receber o convite para coordenar a Conectando Saberes na cidade.

Conectando Saberes

Antes dos Ensinas viajarem para as cidades em que darão aula, recebemos um intensivão.  Lembro de ficar emocionado com a palestra da professora Gina, uma das fundadoras da Conectando Saberes junto com o professor Jayse. Tive contato com eles no intensivão, em janeiro de 2018, e, em seguida, viajei para Caruaru. As coisas começaram a dar errado e, em abril, eu estava mal. Por isso, passei a procurar ferramentas para me agarrar e descobri que a Gina e o Jayse estariam em Recife para um evento. Era uma quinta-feira à noite e pensei: “Quero ouvi-los de novo, preciso me reconectar com aquilo que eles me fizeram sentir”. A Gina tem uma fala muito linda, ela diz: “Ninguém aprende se não for amado.” E é verdade. Então, saí da escola às 17h e fui para Recife assistir à palestra.

O ponto de virada começou a acontecer. Veio o convite em fazer parte da rede, o que é inspirador e um baita desafio. Como é que eu, que estou me formando professor, posso ser capaz de motivar outros educadores a acreditarem na Conectando Saberes comigo?

Conexões: Rodolfo em um dos encontros da Conectando Saberes
Conexões: Rodolfo em um dos encontros da Conectando Saberes
Fonte: Arquivo pessoal.

Saudade

Durante a trajetória por Caruaru a saudade não deu trégua. Sabia que não veria meus pais ou os amigos e, no comecinho, eu sentia falta de tudo. Chegava da escola e chorava. Quando revia as fotos dos meus pais, sentia muita falta deles, mas, ao mesmo tempo, era um exercício que me ajudava a levantar no dia seguinte.

Meus pais lutaram para que eu tivesse as oportunidades que eles não tiveram. Muito do que eu faço é por eles. Os primeiros meses longe foram de dor porque eu estava me sentindo vulnerável. Depois de dias sofrendo, escrevi um texto e me senti em paz. Acredito que a felicidade é uma coisa que vem e vai o tempo todo, mas propósito, não. E pensei: “Se a razão pela qual eu estou aqui são os meus pais, se o lugar de onde eu venho importa, então, vou erguer a cabeça e pensar que tudo o que estou fazendo é pelos alunos, é pela educação, é por essa entrega. Foi assim que ressignifiquei a dor e a saudade, e comecei a ser mais feliz.

Os pais do professor Rodolfo
Os pais do professor Rodolfo
Fonte: Arquivo pessoal.

#RedesQueTransformam

Quando fui convidado para compor um painel do Redes que Transformam, evento da Fundação Lemann sobre educação pública com mais de 600 convidados, tive que selecionar quatro estudantes para participarem comigo, o Ruan, a Suelany, o José Cezar e a Williane. Um dos critérios que usei foi escolher jovens que precisavam dessa experiência para se empoderar.

E eu gosto de contar a história da Williane. Ela tem 14 anos e desde a primeira reunião de pais eu ouvia que ela não era tão boa quanto o irmão. A Williane é uma menina que está se descobrindo como mulher negra, e tenho a impressão de que ela foi silenciada diversas vezes, inclusive na escola e pela escola. Por isso, decidi levá-la ao evento. É incrível como a Williane voltou dessa experiência em que ela pode sentir que a voz dela é importante e que o que ela tem a dizer é relevante.

Rodolfo e quatro alunos durante o evento Redes que Transformam de 2019
Rodolfo e quatro alunos durante o evento Redes que Transformam de 2019
Fonte: Arquivo pessoal.

Ah, um detalhe: de 2018 para 2019, eu voltei a dar aula na primeira escola em que estive em Caruaru, que é o Laura Florêncio. Senti que ainda tinha uma missão a cumprir ali. O Laura está vivendo um momento de reconstrução de identidade. É uma escola considerada violenta pela sua localização, uma escola que refletia o contexto da comunidade e que tinha internalizado uma cultura de não-aprendizado. 

Quando comuniquei aos alunos sobre o convite do Redes, tentei fazer a seleção do jeito mais democrático possível. Eu tinha critérios, claro, mas fiz um concurso de redação para ajudar na escolha. A gestora da escola, que lá trás não estava tão certa em relação ao Ensina, ao saber do Redes ficou feliz. Assim que o painel acabou, ela me mandou um áudio, dizendo que estava emocionada, que tinha acabado de acompanhar o painel ao vivo. “Que coisa mais linda, eu nunca achei que a nossa escola pudesse estar em um espaço como esse”. O maior impacto de ter participado do Redes que Transformam talvez não tenha sido em mim, mas na percepção da escola sobre os alunos. A escola mudou a chave. 

Empoderada: Williane foi uma das alunas participantes do Redes que Transforma
Empoderada: Williane foi uma das alunas participantes do Redes que Transforma
Fonte: Arquivo pessoal.

Os alunos me ensinam

Aprendo uma série de coisas na sala de aula, entre elas, a mais importante é: nenhuma decisão tomada para a educação pública do nosso país pode ser dissociada do que os estudantes pensam e têm a dizer. A sala de aula é o centro e os alunos são a razão. Outra lição que aprendi é o poder de acreditar no potencial do seu estudante. Você precisa acreditar primeiro para que, depois, ele acredite junto com você. Tenho a consciência de que há alunos que eu não atingi. Alguns jovens vão se formar e eu sei que não tive uma presença transformadora na trajetória deles, apesar de ter tentado. E acho que eu nunca vou conseguir o 100%, mas isso não significa que o 100% não seja uma meta.

Não sou um professor resignado, não estou fazendo um favor. A educação de qualidade é um direito previsto na Constituição. A gente não pode se conformar com menos. Sinto que daqui 30 anos as nossas crianças e os nossos adolescentes vão nos perguntar sobre o que a gente fez em nome da construção do país que a gente sonha. Meu plano é estar de pé com toda essa rede, olhar nos olhos das futuras gerações e dizer: “A gente tentou construir um país melhor”.

Rodolfo e o aluno Ruan
Rodolfo e o aluno Ruan
Fonte: Arquivo pessoal.

A assimetria de oportunidades me constrange. É triste ver que a realidade dos meus alunos é dura. Uma parte significativa deles não vai conseguir prestar o vestibular para o Instituto Federal de Caruaru por não ter RG. Isso é inaceitável. Esses jovens precisam ser acolhidos pela escola. A escola precisa fazer sentido para eles. Essa é a minha reflexão: como reverter esse cenário e tornar a escola um espaço onde os nossos estudantes queiram estar?

E o futuro é uma astronave...

Sou filho de pais nordestinos, fui estudante de escola pública a vida toda, sou advogado. Nenhuma dessas definições, no entanto, me completam. A definição que me completa é uma só: sou professor.

Ainda não sei para onde as minhas escolhas vão me levar em 2020, mas independentemente de continuar em sala de aula ou aceitar desafios diferentes, uma coisa eu sei: a educação é o meu propósito. Não consigo me imaginar em outro cenário, em outra trincheira, em nenhuma luta que não seja a da educação pública e de excelência. Dois anos é pouco tempo em sala de aula, tenho muito a aprender. Ainda não sou o professor que posso e quero ser. 

E, do outro lado, para os alunos que por algum instante que seja já pensaram em desistir dos estudos, eu gostaria de dizer que eles são a nossa chance de futuro, que eles são a promessa de um país que ainda não atingiu o seu potencial, que eles são a razão pela qual a gente levanta todos os dias para trabalhar. Não só eu, não só os professores, mas todas as outras pessoas que, juntas, estão querendo fazer essa entrega, que estão inconformadas. Quero que os jovens entendam que a escola é, na verdade, a principal oportunidade de virada de vida, de empoderamento, de exercício de cidadania. O que nós, professores, queremos é um cidadão que acredita no nosso país. Essa é a nossa grande entrega.

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