‘Educação é o meu escudo para enfrentar as violências’
<br>Fabiana Ivo, dA Banca, acredita na construção coletiva, na aprendizagem e no hip-hop para romper bolhas e oferecer novas oportunidades às periferias
Oi, gente! Eu sou a Fabiana Ivo, tenho 40 anos, e vou contar a minha história para vocês.
Sempre frequentei escolas públicas da zona sul de São Paulo, mais precisamente no Jardim Ângela e no Jardim Vergueiro. Estudei perto de casa em meados dos anos 90 e a minha região, o Jardim Ângela, foi considerada a mais perigosa do mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU). E, infelizmente, essa insegurança era sentida todos os dias pelos alunos porque havia violência fora dos muros das escolas, mas também dentro, com policiamento ostensivo, em alguns momentos com guerras de gangues rivais. Por outro lado, nós nos sentíamos aprisionados ali por conta das grades, das travas e dos portões imensos que apareciam de um dia para o outro.
Por consequência dessas situações, fomos crianças e jovens mais agitados e, além disso, muitos assuntos tratados em sala de aula não condiziam com o nosso cotidiano. Na época, então, minha escola teve uma bela sacada: estendeu a comunidade escolar para os arredores. E, assim, os dias educacionais foram ganhando braços fortes por meio da parceria com organizações sociais do entorno, que ofereciam atividades extracurriculares, cineclubes e debates, sempre com convidados. Os professores buscavam a coerência do ensinar com a prática cotidiana. Foi desse jeito, também, que a musicalidade periférica chegou para dialogar com a nossa rotina. Não fui uma aluna disciplinada no Fundamental, mas fui uma aluna dedicada a aproveitar o que me era oferecido.
O professor Aldevino e o rap
No 5º ano, o professor Aldevino, que dava aulas de história, foi uma inspiração e referência. Ele ofereceu à turma a possibilidade de estudar a história da periferia a partir do rap. Isso foi bastante significativo para mim. Essa vivência escolar serviu como um marco decisório para a minha carreira anos mais tarde. Hoje, integro A Banca, uma produtora cultural e social (parceira da Fundação Lemann) que nasceu no bairro do Jd. Nakamura no final dos anos 90, dentro de uma garagem como espaço para ouvir rap e para ajudar jovens da periferia a não entrarem para as estatísticas negativas do nosso país.
Costumo dizer que sem o rap e sem o Racionais MC's parte de nós jovens a época não teriam atravessado a década de 90. Nossa identidade e integralidade só vieram depois de muita música e muita escuta, pois antes de chegarem os livros em nossas mãos chegaram os vinis aos nossos ouvidos, trazendo algo de concreto nas letras, algo que nos fazia refletir e querer “avoar”.
A "adultificação" no Ensino Médio
Com o Ensino Médio veio também a busca pela empregabilidade. Eu e os meus pais fomos atrás de uma escola que fosse referência também no período noturno. Assim segui por três longos anos, me dividindo entre o trabalho, a mobilidade e o sonho de me formar e ser a primeira pessoa da família a concluir o Ensino Médio. Foi difícil, enfrentei o sono e o medo de não conseguir chegar ao final de cada ciclo. Não é fácil a "adultificação" aos 15 anos, as responsabilidades financeiras já naquela idade. Algumas matérias me desafiavam bastante e, quanto mais isso acontecia, mais eu me dedicava a compreender por dentro o pensamento do professor ou da fórmula. Foi dessa maneira que segui no Ensino Médio como a melhor aluna de exatas (matemática, física e química).
Também tive dificuldades por não ter referências acadêmicas, fossem na família ou no meu meio social, já que fazíamos parte, eu e muitos colegas, da primeira geração que estava concluindo o Ensino Médio e poucos, bem poucos, estavam tentando, na época, entrar em universidades públicas porque as particulares ainda não eram tão democratizadas como são hoje. Como nada é linear para alunos da periferia, ainda mais nesse período turbulento da vida, não fui direto para a universidade. Na verdade, eu não sentia que poderia fazer parte daquilo. Aos 19, prestei Fuvest e não passei. Adiei, então, o desejo de fazer faculdade, mas continuei construindo outras práticas, conhecendo a literatura marginal, da periferia.
Só fui entrar na faculdade bem mais tarde. Aos 33 anos, comecei a cursar pedagogia. Também foi um período marcado por altos e baixos. Eu já trabalhava com educação por meio de um programa do governo federal chamado Rede de Educação Cidadã, que desenvolvia formação com base na educação popular sistematizada por Paulo Freire. Essa experiência prévia na área, gerou, na verdade, inúmeros conflitos de tempo e de retórica de conhecimento, uma vez que a universidade em que eu estudava não dialogava com pensadores brasileiros. Daí, decidi mudar para a UNINOVE, onde me formei. Trabalhar e estudar não é fácil, ainda mais quando sua dinâmica não é a padrão.
Educação: resistência e resiliência
Meus passos com a educação foram de muita resistência e resiliência. A educação foi meu norte e meu escudo para enfrentar os tempos duros de violência e de violação de direitos pelos quais a periferia passou. Também foi crucial para definir os rumos da carreira que escolhi. Mesmo que minha base tenha sido conflituosa, as boas práticas escolares e alguns professores me fizeram seguir querendo ocupar e ser esse diferencial na formação de outros jovens.
Tudo foi se interligando e, hoje, sou a concretude do acúmulo de pesquisas e dos desafios postos pela vida. Meu trabalho na A Banca começou com uma parceria com um espaço chamado Caldo Cultural para que o hip-hop fosse ouvido por uma geração de pais e avós que criminaliza seus filhos e netos por serem ouvintes desse gênero. Depois de um ano de parceria, firmamos uma aproximação para pensar e repensar atividades de cultura e educação em espaços públicos, como praças, fóruns e, por fim, escolas estaduais.
Ao assumir uma cadeira de educadora na A Banca, forjei alguns métodos de ensino-aprendizagem com base nas pesquisas e formações que vivenciei ao longo da minha trajetória de educadora popular. Há três anos, assumi a coordenação pedagógica, que pensa e revitaliza formas e metodologias de ensino de atividades ligadas à escola e à música, além de realizar projetos e programas de formação. Como Coordenadora da A Banca, imagino um futuro em que as linguagens operacionais do meio dos negócios de impacto sejam simplificadas para o entendimento do todo e, depois, aprofundadas por cada comunidade conforme suas necessidades.
Como o Emicida diz, "você é o único responsável pelo seu sonho, se você não correr atrás dele, quem irá?". Gosto de falar para os mais novos fazerem dessa frase uma força motriz. Não foi fácil para uma jovem da periferia do Jardim Ângela se sentir potente para representar, dentro das suas especificidades, um bairro inteiro. Também foi desafiador assumir atividades ligadas à educação, porém, era uma forma de me sentir mais, de descrever minhas narrativas, construir o meu formato de olhar e falar sobre o mundo.
Busque seus meios de passar pelos momentos de dificuldade. O meu foi a leitura e a escrita, que me fizeram conhecer outras possibilidades e ir além. Construa coletivamente possibilidades de romper com as bolhas impostas. Juntos somos mais fortes. Ubuntu para cada jovem de cada quebrada do Brasil!