Precisamos levar às meninas negras outros futuros possíveis
A professora Gina acredita em uma educação integral e, para ajudar garotas a se empoderar e garotos a respeitar, criou o projeto Mulheres Inspiradoras
Você já deve conhecer a minha história. Não? Então, clica aqui para saber tudinho sobre mim. Mas, resumindo, meu nome é Gina Vieira Ponte de Albuquerque, tenho 47 anos, e sou filha de dona Djanira Castro Vieira da Ponte, mineira de Manhuaçu, e de Moisés Manoel da Ponte, cearense de Sobral. Nasci em 1972 em Ceilândia, no Distrito Federal. Cresci ouvindo dos meus pais — os dois mal frequentaram a escola — que só por meio da educação eu transformaria o meu futuro e ganharia o mundo. Passei por inúmeras dificuldades, mas consegui realizar o sonho de ser professora.
Trabalhei bastante tempo com crianças até chegar às turmas de adolescentes, onde encontrei vários desafios. Um dos problemas que constatei nessas salas de jovens foi a presença do machismo. Ele está em muitos lugares, inclusive na escola. Então, levei para o ambiente escolar a discussão de gênero para mostrar às meninas que elas poderiam ser o que quisessem. Queria mostrar que há muitas possibilidades identitárias. Foi assim, e depois de estudos e pesquisas, que criei o projeto Mulheres Inspiradoras.
Primeiro, preciso dizer que não bastava criar um projeto com metodologias tradicionais, era necessário fazer um trabalho com metodologias diferentes que provocassem o engajamento dos estudantes porque, no final das contas, o meu grande desafio era engajar os alunos na aprendizagem e transformar a escola no espaço em que eles vissem sentido no que estavam estudando. Então, tinha que sair do lugar de professora, detentora do conhecimento, e me colocar como mediadora, trabalhar com metodologias ativas, mexer com o protagonismo do estudante. O projeto Mulheres Inspiradoras foi criado e executado por mim, em duas edições, em 2014, com cinco turmas do 9º ano, e em 2015, com sete turmas.
Assim, eu propus a leitura de obras de autoria feminina: “O Diário de Anne Frank”, “Eu Sou Malala”, “Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada”, “Não Vou Mais Lavar os Pratos”, “Só por Hoje Vou Deixar o Meu Cabelo em Paz” e “Espelho, Miradouros e Dialéticas da Percepção”. Depois, propus que eles conhecessem a biografia de dez grandes mulheres. Para trabalhar essas biografias, formei um time bem diversificado. Eu queria mulheres brancas e negras, mulheres jovens e idosas, grandes nomes da academia e mulheres com pouca escolaridade, mulheres com faixas etárias similares às das alunas justamente para dizer para elas que a qualquer tempo, seja você quem você for, você pode ser uma mulher inspiradora. E foi assim que eles estudaram a biografia de Anne Frank, Carolina Maria de Jesus, Cora Coralina, Irena Sendler, Lygia Fagundes Telles, Malala, Maria da Penha, Nise da Silveira, Rosa Parks e Zilda Arns.
Exemplos inspiradores
A etapa seguinte do projeto foi conhecer mulheres da própria comunidade. Assim, eles tiveram a chance de conhecer a Patrícia Melo Pereira, uma jovem que, fugindo da violência doméstica, veio para Brasília com a mãe. Um dia, ela chegou à escola relatando problemas familiares. Os colegas de Patrícia foram atrás da professora Eliceuda, que inspirava confiança aos jovens, e disseram: “Professora, a Patrícia está falando bobagem, ajuda a gente a convencê-la a parar de falar dessa história?”
A professora conversou com a Patrícia e descobriu que a família da garota sofria com problemas econômicos terríveis, seus irmãos passavam fome e ela não sabia como lidar com a situação. Eliceuda, então, conseguiu um emprego para a jovem, com a condição de que ela não abandonasse a escola. A partir daí, essa menina se sentiu tão fortalecida e apoiada com a iniciativa que, além de não abandonar a escola, frequentou um curso pré-vestibular parceiro da Educafro, que oferece bolsas de estudos para jovens negros. Patrícia conquistou uma bolsa de estudo para cursar medicina na Venezuela.
Hoje, de volta ao Brasil, ela exerce medicina por aqui.
Depois, os alunos entraram em contato com Madalena Torres, uma grande liderança em Ceilândia. Ela vivia em um convento, motivada pelo desejo de fazer trabalho social. Mas lá ela era explorada e forçada a trabalhar como empregada doméstica, provavelmente por ser uma mulher negra. Com a ajuda de amigos, que descobriram esse fato, ela fugiu do convento. Após a fuga, Madalena foi fazer trabalhos sociais da comunidade, aproximando-se da alfabetização de adultos. Ela se tornou uma forte liderança por trás do CEPAFRE (Centro de Alfabetização de Adultos Paulo Freire).
Ela já representou o Brasil em atividades fora do país e o feito mais recente de Madalena foi compor o MOPOCEM (Movimento Popular por uma Ceilândia Melhor). Madalena é um dos nomes por trás da descentralização da UnB e, graças à sua luta, hoje nós temos campus no Gama, em Planaltina e em Ceilândia.
Eles conheceram também a minha querida professora Creusa. Tive que levá-la à escola como exemplo de mulher inspiradora porque, de fato, ela foi minha grande inspiração. Antes de apresentá-la aos estudantes, eu a entrevistei. O que eu mais queria perguntar para a professora Creusa era porque ela havia se dedicado tanto para que eu aprendesse, porque que ela havia me notado. Logo eu, que queria ser invisível e era quieta para não dar chances ao racismo. Ao reencontrá-la 34 anos depois, ela me disse: “Eu só via uma criança que queria aprender”. Ali, a professora Creusa, que já havia me ensinado tanto, me ensinara uma nova e preciosa missão. Temos que olhar para a força e a potência dos jovens e, não, para as suas faltas e fraquezas.
Por fim, levamos à escola a Cristiane Sobral, autora de “Não Vou Mais Lavar os Pratos”, “Só por Hoje Vou Deixar o Meu Cabelo em Paz” e “Espelho, Miradouros e Dialéticas da Percepção”. Ela foi a primeira mulher negra a passar no vestibular de artes cênicas da Universidade de Brasília, antes mesmo do sistema de cotas. É cantora, atriz, dramaturga, diretora de teatro, coordenadora pedagógica, professora da Secretaria de Educação. As obras de Cristiane já são objeto de estudos em universidades dentro e fora do Brasil.
Em outra etapa importante do projeto, fizemos um trabalho sobre o uso consciente, ético e seguro das redes sociais. Eu queria que os estudantes entendessem que as redes sociais, em si, não têm nenhum problema, elas são apenas ferramentas. O que a gente faz com elas é que pode ser positivo ou negativo. À medida que eu transitava nas mídias sociais digitais, utilizando-as como ferramentas pedagógicas, fui percebendo que era muito recorrente a violência contra as meninas pelas redes sociais. Elas eram xingadas, sofriam esparros, que é a prática de divulgar imagens íntimas.
Então, criamos a campanha: “Nós dizemos não a qualquer forma de violência contra as mulheres.” Mobilizamos os pais, a comunidade e as servidoras da escola; foi um trabalho de conscientização. Fizemos uma parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres do Distrito Federal. Também fizemos um trabalho específico sobre o uso consciente, ético e seguro das redes sociais, no qual os próprios estudantes, a partir do acesso a conteúdos qualificados sobre o uso consciente das redes sociais, produziram peças audiovisuais.
Os estudantes do 9º ano produziram vídeos para orientar os estudantes do sexto, do sétimo e do oitavo ano a usarem as redes sociais com responsabilidade, ética e noção de autocuidado.
A última fase
Na última etapa do projeto, eu pedi que os alunos escolhessem uma mulher inspiradora da vida deles, alguém com quem tivessem algum vínculo afetivo ou uma pessoa que tivesse na área de atuação do estudante ou em seu espaço geográfico. Meu objetivo era fazer essa reflexão sobre a identidade local para fortalecer o sentimento de pertencimento, de orgulho, de comunidade e de coletividade. Como professora de português, eu também queria trabalhar leitura e a interpretação de texto, gêneros e tipos textuais, estruturação de parágrafo, gênero entrevista, gênero biografia, tipo textual narrativo, coesão e coerência textual. Ou seja, conteúdos que nós, professores de língua portuguesa, temos que trabalhar com os estudantes.
Foi a fase mais surpreendente do projeto. Os estudantes diziam: “Professora, eu só posso escolher como mulher inspiradora a minha mãe, minha avó ou a minha bisavó.” Eles me contavam que eu tinha mostrado mulheres muito fortes, potentes.
Falavam: “Nossa, onde é que estavam essas mulheres que a gente não vê?” Porque, de fato, o machismo atua invisibilizando as realizações femininas, realçando o papel da mulher objetificada.
Eu respondia que as histórias de mulheres como as que eu havia apresentado a eles não são tão visíveis quanto deveriam ser. Diante disso, eles escolheram a mãe, a avó ou a bisavó para entrevistar e o trabalho seria esse: ir a campo gerar dados e, em seguida, escrever um texto autoral contando as histórias dessas mulheres inspiradoras.
A primeira surpresa que eu tive foi que esses alunos, embora prestassem reverência e gostassem muito daquelas mulheres, não a conheciam tão bem. Então, eu perguntava: “Você escolheu sua mãe para ser entrevistada, onde ela nasceu? E eles não sabiam. Eu perguntava: “Como ela conheceu o seu pai?” E eles também não sabiam. Então, a gente teve que fazer um roteiro de entrevista bem pormenorizado, para sanar essas lacunas. E quando eles voltavam das entrevistas, vinham com os olhos brilhando, o peito estufado e dizendo assim: “Professora, a minha mãe é muito mais inspiradora do que eu imaginava.”
“Eu descobri, professora, que ela foi obrigada a abandonar escola aos 12 anos de idade para ajudar no sustento da família.” O outro me dizia: “Soube que a minha avó ficou viúva com dez filhos para criar e trabalhou anos a fio em cima de uma máquina de costura.” Outro, ainda, me falava: “Minha mãe foi posta para fora de casa comigo na barriga.”
À medida em que lia aquelas histórias, eu me dava conta do impacto da falta de acesso à educação na vida daquelas mulheres. Eu percebia o impacto do machismo, das marcas de violência na vida daquelas mulheres.
Fui vendo, inclusive, que na narrativa daquelas mulheres aparecia a história da nossa cidade, mostrava o movimento de migração da mulher que sai do semiárido nordestino em busca de uma vida melhor. Eu me dei conta de que, na verdade, as mulheres movimentam a sociedade. Naquela comunidade periférica, em Ceilândia, a figura decisiva na vida daquelas crianças e adolescentes era uma mulher, uma mãe, uma avó, uma bisavó ou uma tia. Aquilo era muito precioso para ficar só comigo e decidi transformar em um livro, tanto para valorizar o trabalho dos estudantes, quanto para visibilizar essas mulheres negras, pobres, periféricas e, também, para falar do machismo a partir das histórias reais. Eu queria mostrar o quanto essas mulheres fazem uma revolução silenciosa. Lançamos mil exemplares do livro em 2016.
E, nessa caminhada, nós, eu e a escola onde o projeto foi realizado, bem como as pessoas que o apoiaram, tivemos muitos resultados alcançados. Ficamos tocados ao receber um retorno das mães. Uma delas nos escreveu: “Queria agradecer pelo projeto Mulheres Inspiradoras porque ele me reaproximou do meu filho. Quando ele chegou em casa com uma carta que dizia que eu fui escolhida para ser entrevistada porque era uma mulher inspiradora, tudo mudou entre nós.”
De Ceilândia para o mundo
Mas houve também outros resultados que a gente não esperava. Alguém acompanhou a nossa campanha de prevenção e combate à violência contra a mulher pelas redes sociais e essa pessoa mandou um e-mail do Ministério da Educação perguntando: “Professora, porque você não inscreve o seu projeto no 4º Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos? Nos inscrevemos e, para a nossa alegria, conquistamos o primeiro lugar. Levamos R$ 15 mil para a escola. Na verdade, esse acabou sendo o primeiro de uma série de prêmios que a gente conquistaria, porque depois ganhamos o 8º Prêmio Professores do Brasil, em 2014, que premiava a melhor experiência pedagógica dos anos finais. Na mesma edição, ganhamos o prêmio extra de melhor experiência pedagógica do Brasil. Conquistamos, ainda, o 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, promovido pela Secretaria de Mulheres da Presidência da República.
No dia 29 de maio de 2015, fomos informados pelo Correio Braziliense de que o projeto Mulheres Inspiradoras tinha sido escolhido pelo Ministério da Educação e pela OEI (Organização dos Estados Ibero-americanos) para representar o Brasil em um prêmio Internacional e iríamos para Lima, no Peru, concorrer com outros 18 projetos de países como Uruguai, Paraguai, Argentina, Costa Rica, El Salvador e Panamá. Também conquistamos o primeiro lugar no I Prêmio Ibero-americano e levamos US$ 20 mil para a escola.
Com a obtenção desse prêmio, eu tive a oportunidade de falar do projeto em um evento chamado “Brasília, Cidade Internacional”, que tinha por objetivo dar visibilidade para boas práticas que partiram de Brasília. Um representante do Banco de Desenvolvimento da América Latina, o CAF, que estava presente nesse evento, gostou do projeto, pediu que eu enviasse informações mais detalhadas sobre ele e, mais tarde, perguntou se a havia interesse em que o projeto chegasse a mais escolas.
Então, no ano de 2017, foi firmado um acordo de cooperação internacional entre o governo de Brasília, a OEI e a CAF, fazendo com que o projeto Mulheres Inspiradoras chegasse a mais 15 escolas do Distrito Federal. Atualmente, 40 instituições de ensino do Distrito Federal participam do programa. Em Campo Grande, são 37 escolas participantes e mais quatro municípios de Mato Grosso.
Além disso, tivemos a possibilidade de inserção na mídia. Fomos ao Encontro com Fátima Bernardes, ao Conversa com Bial e ao Espelho, do Lázaro Ramos. Por que que eu gosto de destacar isso? As grandes mídias hegemônicas têm o poder de chegar muito longe. E o projeto Mulheres Inspiradoras promove uma concepção de educação e um conceito de qualidade de educação muito diferenciados. Porque não basta falar que é necessário promover uma educação de qualidade, é importante dizer de qual qualidade estamos falando e o Mulheres Inspiradoras versa sobre qualidade humana, qualidade das relações, qualidade do desenvolvimento do pensamento crítico, qualidade dos afetos, qualidade do respeito à história, ao pertencimento e à memória.
Então, à medida em que os professores assistiram a esses programas, muitos entraram em contato comigo e pediram para conhecer o projeto. É preciso dizer que, nós, professoras, mulheres negras, precisamos ocupar esses espaços. Eu preciso dizer tenho profunda consciência de que o meu lugar traz muitas vantagens em relação a outras pessoas negras. A minha situação não é a regra entre as mulheres negras no Brasil. A maior parte delas ocupa os lugares da subalternidade. Como destaca Angela Davis, nós somos as últimas na escala da pirâmide social.
Então, quando a grande mídia começa a me chamar para participar e divulgar o projeto, eu não pude recusar porque é importante que outras mulheres possam vislumbrar também ocupar esse espaço de prestígio. Quando eu, aos oito anos, vi a professora Creusa, uma mulher negra, ocupando aquele lugar que, para mim, era o lugar mais importante numa comunidade, conheci outra identidade possível. Nós precisamos levar às meninas negras outros futuros possíveis.
Outros prêmios
Para encerrar, pensando nessa perspectiva de ser professora, eu queria destacar outros prêmios que ganhei com o projeto Mulheres Inspiradoras e que não se comparam aos que ganhamos em dinheiro, que somam R$ 100 mil. Há três prêmios que considero os mais relevantes. O primeiro deles foi chegar à escola, em plena segunda-feira, e ser recebida pelos estudantes na porta da sala dizendo assim: “Professora, não via a hora da sua aula começar.” Um professor que não se preocupa com o resultado que o trabalho dele está produzindo não vai estar feliz e não vai produzir uma educação de qualidade transformadora.
Para mim, perceber que estava sendo capaz de mobilizar os estudantes para que eles se engajassem no processo de ensino e aprendizagem foi um prêmio de valor imensurável.
O segundo prêmio sobre o qual eu gostaria de falar foi ouvir de estudantes que participaram do programa a frase: “Com o projeto Mulheres Inspiradoras, entendi que eu quero ser uma mulher que carrega uma grande história.” E o terceiro prêmio, mas não menos importante, foi ouvir o depoimento das mulheres que participaram do projeto. Os estudantes me contaram que, quando chegavam em casa e anunciavam a escolhida para a entrevista, muitas reagiam perguntando algo como: “Mas, eu sou uma mulher inspiradora?”. Nas entrelinhas, estava dito: “Mas eu, essa mulher pobre, diarista, trabalhadora doméstica, negra, fora do padrão estético mais celebrado, posso ser uma mulher inspiradora?” E, então, quando nós convidamos essas mulheres a narrarem as suas histórias do lugar de uma pessoa inspiradora, até a maneira como elas contavam a própria história mudava. Várias dessas personagens, depois que participaram do projeto, disseram: “Reavaliei a minha vida e eu sei, eu sou uma mulher inspiradora.”
Imagine a preciosidade disso: sendo eu neta de dona Manoela, filha de dona Djanira, duas mulheres periféricas, negras, com histórias muito parecidas às histórias das mãe e avós dos estudantes, ver que um projeto realizado no chão da escola pública trouxe algum impacto para a vida dessas mulheres.
Hoje, estou afastada (em uma licença remunerada) do chão da escola para terminar o meu mestrado em linguística com ênfase em análise do discurso crítico. É uma área que trabalha as relações entre linguagem e sociedade. A minha pesquisa, especificamente, é sobre identidade docente dentro do projeto Mulheres Inspiradoras. Estou investigando como é que os professores e professoras representam as suas práticas e se auto-representam discursivamente dentro do projeto Mulheres Inspiradoras e, a partir da análise do discurso desses profissionais, vou mapear o que pode ser feito para melhorar o programa.
Assim que terminar mais essa caminhada, gostaria muito de voltar para a sala de aula. Estou aberta para aquilo que me oferecerem porque aprendi que a gente não pode se fechar para nada.