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13 agosto 2022 | 00h00

A alfabetização na idade certa é um direito - garanti-lo é dever de todos

Professora Eliana, Professora Kishiko, Dona Odete. Naquela escola estadual grande, de nome grande - Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Professora Thereza Dorothea de Arruda Rego -, de um bairro simples da periferia da Zona Leste da cidade de São Paulo, eu aprendi a ler e escrever. Não frequentei a educação infantil (ou “prezinho”, como a gente chamava), então o primeiro “mundo” que conheci maior que a minha casa foi me apresentado por essas mulheres. Com elas descobri que esse mundo que se abria diante de mim era, na verdade, o único caminho possível para continuar descobrindo e acessando outros mais ao longo da minha vida. Me agarrei ao que elas me ensinaram e com alegria segui minha vida escolar adiante.

Sempre estudei em escolas públicas e sempre fui boa aluna. Gostava de ser boa aluna. Mas mesmo sendo boa aluna teria tido muito mais dificuldades do que tive - e tive bastante - se essas três professoras não tivessem investido seu tempo, corações, habilidades e técnicas para que eu me tornasse proficiente em leitura e escrita. Para que eu não apenas seguisse o caminho que se abria diante de mim, mas também pudesse interferir nesse caminho, escrever minha história, ler as histórias dos outros, pensar sobre elas, me posicionar. Alfabetização é isso: aprender a ler, ler para aprender.

A alfabetização na idade certa é fundamental para que as crianças consigam seguir sua vida com sucesso e, ouso dizer, com alegria. Ao final do 2º ano, ali pelos 7 ou 8 anos, todas deveriam dominar as habilidades de leitura e escrita previstas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O motivo para nos preocuparmos em garantir essas habilidades neste ponto inicial da trajetória escolar é simples: sem elas, todo o aprendizado escolar dos anos seguintes, em todas as áreas de conhecimento, é prejudicado. Crianças e adolescentes dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, como mostram inúmeros estudos, sofrem os efeitos negativos dessas defasagens por toda sua jornada escolar - resultando no aumento de distorções idade-série, perda de interesse pela escola, evasão e reforço de desigualdades e exclusões educacionais e socioeconômicas.

As consequências também chegam à vida adulta. Como citei neste artigo publicado na Folha de S. Paulo, co-assinado com a Márcia Ferri, do Instituto Natura, e Veveu Arruda, da Associação Bem Comum, um estudo elaborado pelo pesquisador Ricardo Paes de Barros, indica que um indivíduo alfabetizado alcança um índice de 77% em uma escala de qualidade de vida, enquanto um não alfabetizado alcança 43%. Pense no tamanho do impacto. Pense na persistência desse impacto ao longo de uma vida. Multiplique pelas milhões de vidas de estudantes que, assim como eu, têm na escola a primeira e talvez única oportunidade para acessar mundos além do destino determinado pelo CEP onde nasceram.

Nosso país já enfrentava grandes desafios para alfabetizar as crianças na idade certa antes da pandemia. Os últimos dados que temos do SAEB, de 2019, mostram que apenas 49% dos estudantes do 2º ano das redes públicas possuíam níveis adequados de alfabetização. Em alguns estados, essa porcentagem cai para 21%. Apesar de ainda não termos dados oficiais para o período, sabemos que a pandemia ampliou e aprofundou a defasagem e as desigualdades. De acordo com os resultados da avaliação de fluência leitora, realizada pela Parceira pela Alfabetização em Regime de Colaboração (PARC), 44% das crianças do 2º ano eram consideradas fluentes em leitura em 2019.  Dois anos de escolas fechadas depois, essa proporção caiu para 28%.

Se a pandemia agravou o que antes já era desafiador, a alfabetização a partir de agora deve ser prioridade absoluta para todos: para as escolas, secretarias estaduais e municipais e, claro, para aqueles que estão com a responsabilidade de traçar os planos de governo dos atuais candidatos aos governos estaduais e federal. Alfabetizar todas as crianças, na idade em que elas têm por direito serem alfabetizadas é mais do que um dever:  é urgente, é inegociável, é condição básica para a efetivação dos direitos e base para o desenvolvimento do país.

A boa notícia é que já existem exemplos bem sucedidos dentro de casa. O principal deles é o Ceará que, desde 2007, vem implementando com sucesso o Pacto para Alfabetização na Idade Certa (PAIC), fazendo com que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica dos anos iniciais (Ideb) do estado passasse de 3,5 para 6,3 em 12 anos.

Outros estados (Amapá, Espírito Santo, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Piauí, Mato Grosso e Rio Grande do Sul) começaram a colocar em prática, nos últimos quatro anos, as principais lições aprendidas com o Ceará, com apoio da PARC, formada pela Fundação Lemann, Instituto Natura e Associação Bem Comum. Juntos, apoiamos as políticas criadas e implementadas pelos estados em estreita colaboração com seus municípios, garantindo que os fatores de sucesso da experiência cearense inspirem as políticas de alfabetização nesses estados. Mais de 1,3 milhão de alunos de 1º e 2º anos de escolas públicas em redes parceiras já são beneficiados por essa iniciativa.

Alguns desses fatores de sucesso merecem destaque. A implementação das estratégias precisa sair do papel e, de fato, ser aplicada nas salas de aula, com constante acompanhamento. A escolha aqui é pelo regime de colaboração, em que o estado apoia e atua em parceria com os municípios (onde estão a maioria das matrículas dos anos iniciais do Ensino Fundamental do país), com mecanismos de incentivo e apoio técnico e financeiro. Além disso, nunca é demais lembrar que o pedagógico é o coração: a formação dos professores, bem como materiais didáticos e as avaliações de desempenho dos estudantes são indispensáveis para uma implementação de qualidade, e são também elementos que se fortalecem com essa cooperação. 

Por fim, o compromisso das lideranças em todos os níveis - federal, estadual e municipal - com a alfabetização na idade certa não pode ser projeto de um ou outro governo, mas uma política pública que precisa de investimentos constantes e contínuos. O apoio do presidente, governadores, governadoras, prefeitos e prefeitas é fundamental para viabilizar as condições de trabalho das secretarias de educação e das escolas e que as tomadas de decisão sejam de fato feitas com critérios pedagógicos.

A alfabetização na idade certa pode determinar futuros promovendo formação integral das nossas crianças e as preparando para a vida e a cidadania. Ser alfabetizada na idade certa definiu o meu futuro - o futuro da menina estudiosa da zona leste da cidade de São Paulo, da escola grande, de nome grande. E pode determinar o futuro de milhões de crianças que só terão 7 anos uma vez na vida.

Artigo escrito por Daniela Caldeirinha, Diretora de Projetos da frente de Alfabetização 

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