A equidade racial no centro da recomposição das aprendizagens
Por Deloise Bacelar de Jesus
O desafio da desigualdade racial na Educação brasileira não é um problema recente. O racismo em nossa sociedade, afinal, é histórico, sistêmico e estrutural. Desde que a pandemia arrefeceu, porém, é possível confirmar que o problema se agravou entre nossos estudantes. Os resultados que antes já revelavam que nossas crianças não estavam atingindo os níveis de aprendizagem a que tem direito se aprofundou e, em consequência, também cresceu a desigualdade.
Se precisamos lidar para recompor a aprendizagem perdida nos anos de pandemia, é urgente que se inclua nessa perspectiva a questão racial.
O diagnóstico que o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) nos oferece para 2019 já revelava que a aprendizagem dos estudantes brancos para Língua Portuguesa era de 46% do esperado, ante 27% para os estudantes pretos. Em Matemática, os índices são ainda mais graves: de 25% para os brancos e apenas 11,9% para os pretos. Ou seja, o aprendizado para os alunos pretos era 1,6 vezes menor em Língua Portuguesa e duas vezes menor em Matemática. O ciclo fundamental, portanto, já era finalizado em 2019 com uma desigualdade racial muito forte.
Com a pandemia, dada a perversa eficiência do racismo, as desigualdades que já existiam ficaram piores e, de quebra, passamos a ter menos informação sobre a perspectiva racial dos resultados educacionais. Podemos olhar para os dados do Saeb em São Paulo em 2020: alunos brancos e amarelos perderam a aprendizagem em cerca de 46% em relação ao que tinham antes da pandemia. Já estudantes pretos, pardos e indígenas perderam 63%.
Isso se explica em grande parte pelo mito da democracia racial. Como no Brasil em geral não se acredita que existe racismo, o problema não é encaminhado, o que reforça o apagamento racial e o racismo escolar. Nossa sociedade normalizou o fato de as escolas brasileiras não falarem sobre raça e trabalharem o conhecimento de uma perspectiva eurocêntrica. Quando o estudante está na disciplina de História, por exemplo, ele vê a população negra como escravizada, mas não estuda o Quilombo dos Palmares, as civilizações africanas, ou até mesmo o papel dessas civilizações na construção da Matemática e das Ciências. Não são estudados autores negros, tampouco as personalidades negras de nossa História. Falta uma parte importante da História, da Matemática e das Ciências. Falta também um ambiente que ofereça o acolhimento, crie pertencimento e trabalhe melhor as oportunidades para que estudantes negros e negras possam se conhecer, reconhecer e desenvolver.
O racismo escolar torna ainda mais crítica a relação desse aluno com a escola. As pesquisas existentes sobre vieses das relações étnicos raciais na sala de aula mostram que os professores se aproximam e dão mais afeto aos estudantes brancos, desde abraçar até orientar ou colocá-los para sentar mais à frente na sala de aula. Isso fica ainda mais evidente em avaliações padronizadas dos estudantes: alunos negros costumam se sair melhor do que na avaliação dos professores, ou seja, a crença do educador de que aquele estudante pode aprender é menor, uma questão de viés inconsciente. O próprio sistema, enfim, faz com que o estudante internalize o racismo e não acredite que ele é capaz de aprender ou que aquele é um ambiente seguro e onde ele pertence.
A recomposição das aprendizagens pós-pandemia precisa ser planejada considerando este contexto.
A desigualdade racial na educação não pode ser tratada como um apêndice, mas como aspecto central nos desafios que se impõem.
A busca por equidade racial é um alicerce para o sucesso das estratégias de recomposição. Para isso, precisamos descartar estratégias universalistas, que pensem todos os estudantes da mesma maneira. Se assim o for, os estudantes negros vão continuar ser ter seu direito a aprendizagem com equidade garantida. Se queremos ter bons resultados de aprendizagem, é preciso que as escolas tenham uma perspectiva antirracista e garantam que os estudantes negros, que são a maioria na rede pública, sintam que pertencem àquela comunidade. Aliás, estudos internacionais indicam que estudantes brancos também têm melhores resultados educacionais quando se discute identidade com uma perspectiva racial na escola.
Mas quais são os caminhos para a equidade racial num contexto de recomposição das aprendizagens? Em primeiro lugar, é preciso estudar a estrutura já existente para isso. Existem as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornaram obrigatório o estudo da cultura e história indígena e afro-brasileira. Devemos olhar os conteúdos que vão ser apresentados e trazer cor para essas aulas. Por exemplo, como a educadora e ativista Bárbara Carine defende: na disciplina de Matemática, podemos discutir o Teorema de Pitágoras lembrando que ele não vem só da Grécia, mas data da África e do Egito muitos anos antes. A ideia é sempre se questionar sobre como fazer para que o aluno se apaixone pelo conteúdo com uma perspectiva que também seja relevante para a cultura e a vivência dele.
Outro caminho importante é escutar as lideranças negras, convidar movimentos e seus agentes para construírem as estratégias de recomposição de aprendizagens. O momento do recadastramento dos estudantes pode ser utilizado para perguntar a declaração de cor dos alunos e da família e manter esses dados vivos ao longo da trajetória escolar, analisando as diferenças de resultado por cor e raça – sem estigmatizar os estudantes, mas garantindo que os professores consigam se sensibilizar e pensar em estratégias que funcionam para aquela escola. Por fim, é preciso construir com os alunos. Muitas pesquisas mostram que a discussão das identidades faz com que os estudantes entendam de onde vem o sofrimento que sentem – a angústia, a opressão, a sensação de não pertencimento. Isso os ajuda a conseguir lidar com essas dores, inclusive para poder participar dos processos de aprendizagem.
Não existe uma fórmula pronta.
No Brasil, as realidades educacionais são muito diferentes. O convite que fazemos é para que as escolas tragam a questão racial para a pauta, ampliem a leitura, o repertório e as informações sobre isso, para então formular uma estratégia que funcione, com base nos agentes que estão naquela realidade. A perspectiva de recomposição das aprendizagens deve ser construída a partir de uma visão afrocentrada e antirracista. Não se trata de um processo simples, e estamos apenas começando. É preciso ter paciência, resiliência e compromisso para esse movimento que será de mudança de paradigmas para todo mundo. Mas não podemos deixar de ter no horizonte a certeza de que a escola é ao mesmo tempo um espelho, que reflete o racismo estrutural e a nossa dívida histórica, mas também é uma janela que aponta para nosso futuro. Que ele possa ser mais justo, inclusivo e avançado para todas as pessoas.