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15 setembro 2022 | 00h00

Filantropia colaborativa: quando um mais um é mais que dois

Com a divulgação do Ideb 2021, que mede  a qualidade do ensino nas escolas públicas, lembrei de um trabalho de filantropia colaborativa de grande impacto na educação que começou alguns anos atrás, em 2018.

"Um mais um é mais que dois."

A frase pode até soar singela, mas é a que primeiro me vem à mente ao falar organizações que unem conhecimentos e recursos a fim de buscar soluções para problemas complexos e de grande impacto social. A mobilização combinada de forças – conhecimentos, experiências, ações e foco – é uma estratégia de alta potência para o enfrentamento de questões urgentes e de larga escala. É o caso, por exemplo, da necessidade de melhorar os índices de alfabetização no Brasil, permitindo que crianças estejam fluentes em leitura na idade certa e que possam seguir uma trajetória escolar alinhada às demandas de cada etapa.  

Em 2018, tive uma conversa com Denis Mizne, nosso diretor-executivo na Fundação Lemann, depois de uma reunião com outras organizações que também trabalham no enfrentamento dos problemas educacionais no Brasil. Ele dizia que percebia o compromisso real e os esforços de cada uma das entidades, inclusive nós mesmos, mas que a frustração da responsabilidade também estava presente ao observar que, apesar dos resultados advindos do investimento e compromisso do trabalho de cada um de nós, a qualidade da educação brasileira como um todo ainda estava distante de contemplar as demandas, o potencial e os direitos dos estudantes. Ambos nos provocamos a pensar se isso poderia ser diferente, se os resultados poderiam ser ampliados, caso as organizações somassem esforços. No dia seguinte, iniciamos as conversas sobre isso. 

Num primeiro momento, o que precisávamos saber era se existia apetite para trabalharmos de um jeito diferente: em vez de iniciativas próprias, somar recursos, capacidades e conhecimentos a fim de desenvolver um projeto coletivo, mais ambicioso e, por consequência, de maior impacto. Num processo muito aberto, de troca e escuta, o primeiro passo foi entender quais eram as condições para que a iniciativa funcionasse, quais eram os focos temáticos específicos e comuns que nos uniam em torno da garantia da aprendizagem, e quais as possibilidades de cada organização. 

Trabalhamos ao longo de alguns meses, em conversas, diálogos e construção conjunta das premissas que desaguaram num aprendizado único e valioso por si só. Mas não ficamos nisso. No final de 2018, a Fundação Lemann e o Instituto Natura firmaram as bases da chamada Parceria pela Alfabetização em Regime de Colaboração (PARC). As duas organizações olhavam para essa temática no Brasil e, embora naquele momento não estivéssemos incidindo diretamente nos desafios específicos dessa etapa educacional tão importante, sabíamos que era possível e havíamos amadurecido a ideia de que a soma das partes seria maior do que o trabalho individual e que este era mesmo um foco prioritário fundamental para o país. Sabíamos que valia a pena somar esforços, compromisso, visão e capacidades e, juntos, trabalhar num modelo de colaboração pelo impacto. Foram ainda mais alguns meses em 2019 para alinhar, ajustar o foco e fechar a parceria com a Associação Bem Comum. 

Em se tratando de alfabetização, já tínhamos um exemplo emblemático no Brasil – o caso de Sobral, no Ceará. O município já havia desenvolvido um plano de gestão educacional focado na erradicação do analfabetismo, na redução da evasão escolar e na valorização da gestão pedagógica das escolas. Com ele, consolidou uma rede de educação pública que é referência não apenas no Brasil como também fora dele. Em 2015, Sobral se tornou o município de melhor Ideb do Brasil, chegando a receber nota 9,1 (para os anos iniciais de aprendizagem) em 2017, contra 5,6 da média nacional naquele ano. A experiência inspirou o governo do Ceará a desenvolver o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), e levou o estado a alfabetizar 92,7% de suas crianças no segundo ano.

A experiência do Ceará era mesmo inspiradora e parte importante das lideranças dela estavam dispostas a somar esforços conosco, traduzidos no importante trabalho da Associação Bem Comum. Foi a partir dela que, em 2019, implementamos a Parceria pela Alfabetização em Regime de Colaboração (PARC), um trabalho que, trocando em miúdos, leva aos estados as diretrizes que deram certo no Ceará e os apoia na execução de políticas públicas. Um tripé sustenta o projeto: Fundação Lemann e Instituto Natura oferecem financiamento e apoio técnico, e a Associação Bem Comum faz a interface técnica para todo o diagnóstico e implementação das diretrizes e plano de ação; já a formulação da política cabe ao governo estadual. Hoje, a PARC engloba 11 estados brasileiros, que trabalham para melhorar os índices de alfabetização no país. São 1.859 municípios e mais de 1,2 milhão alunos do 1º e 2º anos do Ensino Fundamental da rede pública.

Vale dizer que o processo de construção da PARC foi desafiador. Lembro que, à certa altura, ouvi uma analogia com a história de Frankenstein. Se uma organização fizesse os braços, outra cuidasse das pernas, e uma terceira fizesse a cabeça, terminaríamos por criar um monstro disfuncional. Num trabalho colaborativo, que envolve diferentes organizações sociais, e também governos, o desafio é, a partir do melhor de cada organização, construir uma forma de fazer que seja coerente no todo e alinhada pelos objetivos com o bem comum e o impacto social positivo. Ao longo do desenvolvimento da parceria, cada parte aprendeu a ceder naquilo que era o melhor para os objetivos e o trabalho comum, num processo de constante amadurecimento. 

Criamos, por fim, uma operação que tem uma forma própria de existir, e que ainda assim pode inspirar mais ação conjunta e colaborativa. Temos uma governança específica que, de fato, multiplica recursos e capacidades, resultando em impacto mais profundo, mais escalado e mais qualificado para a sociedade. Ainda há muito a ser feito. O percentual de crianças de 6 e 7 anos que não sabe ler e escrever quase dobrou no período da pandemia. Segundo dados do IBGE, cerca de 2,4 milhões de crianças brasileiras não foram alfabetizadas na idade certa, o equivalente a 40,8% do total dos brasileiros dessa idade. É um desafio complexo, que exige ações coordenadas e conhecimento, recursos e esforços concentrados. Eu me sinto orgulhoso por ter participado do início desse trabalho na Fundação Lemann e, desde então, percebo que a mobilização de organizações em torno de uma questão em comum se apresenta como um caminho valioso para os tão complexos problemas do país. Nas parcerias colaborativas inter e multissetoriais, boa parte do aprendizado está em entender que, se todos estão dispostos a aprender com as diferenças, treinar a escuta, ceder e agregar novas formas de trabalhar, o resultado é mais potente e duradouro – e, neste caso, ao contrário do que nos ensinam os livros de matemática quando estamos nos primeiros passos da alfabetização, "um mais um é mais que dois".

Artigo escrito por Felipe Proto, Diretor de Desenvolvimento de Ecossistema

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